sexta-feira, 21 de novembro de 2008

Sobre coisas (e aspirinas) - Parte um.


- Não gosto de falar do Anty só por falar - Disse ela.

-Está bem - Respondeu ele. - Eu só estava perguntando.

- Posso falar de outra coisa, se o que você quer é simplesmente ouvir.

- Não seja tão má.

- Anderson é como um doce de goiaba.

- Putaquepariu... Como um doce de goiaba?

- Hmm... Anderson é como um copo d´agua numa tempestade.

- Ah! - Exclamou ele.

- Ele deveria ter nascido naquela época de que fala a Da.Maria quando bebe demais. Uma época em que ninguém andava preocupado, em que os bondes eram puxados por cavalos e as guerras só ocorriam no campo. Não havia remédios contra a insônia, isso é o que diz a velha Maria.

- A bela época de ouro - Comentou ele. - Certa vez, também me falaram de tempos assim. A minha mãe, tão romântica, com o seu cabelo solto... Criavam abacaxis nos balcões das janelas, de noite nem havia necessidade de escarradeiras, era algo extraordinário. Mas eu não vejo o Anderson metido nesse ambiente real.

- Eu também não, mas ele ficaria menos triste. Aqui, tudo lhe faz mal, tudo lhe dói, até as aspirinas o incomodam. Na verdade, ontem à noite fiz com que ele tomasse uma aspirina porque estava com dor de dentes. Segurou a aspirina e começou a olhá-la; era muito dificil para ele decidir metê-la na boca. Disse-me umas coisas muito estranhas, que era nojento usar coisas que, na realidade, não conhecemos, coisas que outros inventaram para acalmar outras coisas que tampouco ninguém conhece... Você já sabe como ele é quando começa a dar voltas.

- Você repetiu várias vezes a palavra "coisas" - Disse ele. - Não é elegante, mas mostra muito bem, em contrapartida, o que está acontecendo com Anderson. É uma vítima da "coisidade", é evidente.

- O que é a "coisidade"? - perguntou ela.

- A "coisidade" é aquele desagradável sentimento de que, ali onde termina a nossa presunção, começa o nosso castigo. Lamento ter de empregar uma linguagem abstrata e quase alegórica, mas quer dizer que o Anty é patologicamente sensível à imposição de tudo aquilo que o rodeia, do mundo em que vive, do que lhe foi destinado, para dizer da maneira mais gentil. Em resumo, é despedaçado pela circunstância. Ainda mais resumidamente, o mundo o incomoda. Você já o deve ter suspeitado, moça, e imagine, com uma deliciosa inocência, que o Anderson será mais feliz em qualquer uma ditadura de bolso que as Donas Marias deste mundo fabricam, sem falar de minha mãe, a do nordeste. Suponho que você não acreditou naquela história de abacaxis...

- E também não acreditei nas escarradeiras - respondeu ela. - É dificil de acreditar.

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